Para lá da guerra na Ucrânia… — Uma tragédia em curso: a impossibilidade de fazer “outra coisa” , por Alastair Crooke

Seleção e tradução de Francisco Tavares

6 min de leitura

Uma tragédia em curso: a impossibilidade de fazer “outra coisa”

 Por Alastair Crooke

Publicado por em 19 de Junho de 2023 (original aqui)

 

Foto: domínio público

As condições que deram origem à era dourada que criou a “Geração de Conforto” já não existem, escreve Alastair Crooke.

 

A Tragédia que aflige o Ocidente atualmente consiste, por um lado, na impossibilidade absoluta de continuar a fazer o que tem vindo a fazer – mas apenas igualada pela impossibilidade de fazer qualquer outra coisa.

Porquê? Porque as condições que deram origem à era dourada que criou a “Geração Conforto” já não estão disponíveis: Crédito a juro zero, inflação zero, uma comunicação social conivente e energia barata a “subsidiar” uma base de produção cada vez mais reduzida e esclerosada (pelo menos na Europa).

Essas décadas foram o fugaz “momento de sol” do Ocidente. Mas acabaram. A “periferia” consegue desenrascar-se sozinha, obrigado! Estão a sair-se bem – bastante melhor, de facto, do que o centro imperial nos dias que correm.

O paradoxo mais profundo é que todas as escolhas fáceis ficaram para trás. E os ventos contrários da dívida, da inflação e da recessão estão agora a fustigar-nos ferozmente. A “desagregação” do sistema já está presente sob a forma de fraqueza governamental e institucional: o “sistema” não teve a vontade de tomar decisões difíceis quando podia. Na altura, ainda havia opções fáceis e, invariavelmente, a via mais fácil era a escolhida.

As elites tinham absorvido o ethos egocêntrico e mimado da geração do “eu”. A classe permanente entregou-se a sua própria auto-satisfação, abdicando de qualquer preocupação com os seus “peões” que desdenhava profundamente. A crise atual recaiu sobre eles próprios. No espaço de 20 anos, destruíram duzentos anos de responsabilidade financeira.

No entanto, é o que é – e é aí que estamos. E mesmo que agora se compreenda cada vez mais que o Ocidente não pode persistir como se “tudo estivesse bem” – mesmo que os Governantes tentem continuar a imprimir dinheiro, os resgates e com a narrativa mediática a lavar os seus erros – eles sentem a crise, a “viragem” que se aproxima.

Portanto, dito de uma forma simples, isto constitui o paradoxo: já é óbvio que continuar a fazer o que as elites ocidentais estão a fazer na Ucrânia toca na definição de loucura (continuar a repetir a mesma coisa, apenas com a convicção de que “da próxima vez” o resultado será diferente). A questão que “paira” é a impossibilidade de “fazer outra coisa”.

O Washington Post lança dúvidas:

“No momento em que a Ucrânia lança a sua tão esperada contraofensiva contra os ocupantes russos entrincheirados, tanto Kiev como os seus apoiantes esperam uma rápida reconquista de um território estrategicamente importante. Qualquer coisa menos do que isso colocará os Estados Unidos e os seus aliados perante questões incómodas que ainda não estão preparados para responder“.

“No momento em que se dirige para a campanha de reeleição do próximo ano, Biden precisa de uma grande vitória no campo de batalha para mostrar que o seu apoio incondicional à Ucrânia reforçou a liderança global dos EUA, revigorou uma política externa forte com apoio bipartidário e demonstrou o uso prudente da força militar americana no estrangeiro”.

 

A impossibilidade de “fazer outra coisa” que não seja continuar o conflito será promovida vigorosamente: Biden precisa disso (as armas fornecidas à Ucrânia não foram suficientemente longe…) e, além disso, seis “Estados oscilantes” geopolíticos (Brasil, Índia, Indonésia, Arábia Saudita, África do Sul e Turquia) correm o risco de alinhar com o eixo Rússia-China, a menos que Putin seja humilhado:

“Temos de atuar para evitar um enfraquecimento significativo da posição dos EUA no equilíbrio de poder global. Com a recusa dos Estados oscilantes de se alinharem atrás dos Estados Unidos na guerra Rússia-Ucrânia, ou na competição com a China, muitos destes países-chave já se estão a afastar. A ameaça de uma cooptação sino-russa de um BRICS alargado – e, através dele, do Sul global – é real e tem de ser enfrentada”.

Dito de forma clara: Os EUA devem persistir na Ucrânia. Porquê? Para salvar a agora ameaçada “Ordem Baseada em Regras”.

A impossibilidade de fazer outra coisa (que não seja continuar a escalada na esperança de, pelo menos, “congelar” o conflito, como uma opção padrão dos EUA há muito favorecida) será retratada como convincente. Dito de forma simples, falta ao Estado Permanente a coragem para tomar decisões difíceis – para dizer a Moscovo: “Deixemos este episódio infeliz (Ucrânia) para trás. Desenterrem os projetos de tratados que escreveram em Dezembro de 2021 e vejamos como podemos trabalhar em conjunto para devolver alguma funcionalidade à Europa”.

E, claro, a “impossibilidade de fazer outra coisa” aplica-se em grande medida ao sistema económico ocidental. As contradições estruturais tornam impossível qualquer coisa “diferente” de resgates e de gastar mais do que se ganha. É culturalmente incorporado no ethos egocêntrico e mimado da geração “conforto” que constitui as elites ocidentais. Um fracasso da cultura – da coragem de enfrentar escolhas difíceis com integridade.

É este o paradoxo ocidental. Uma tragédia grega é aquela em que a crise – no centro de qualquer “tragédia” – não surge por mero azar, pela qual ninguém é realmente culpado, ou poderia ter previsto. O sentido grego é que a tragédia é quando algo acontece, porque tem de acontecer; devido à natureza dos participantes; porque os actores envolvidos o fazem acontecer. E eles não têm outra escolha senão fazê-la acontecer, porque é essa a sua natureza.

Esta é a implicação mais profunda que decorre do trágico dilema de hoje, que pode muito bem seguir para um desenrolar completo da tragédia naquilo que seria corretamente definido como uma “guerra de escolha” ocidental.

O que é que aconteceu? A natureza das elites mudou. O sentido inflacionado de auto-importância e autoindulgência substituiu o da integridade e o de olhar “a verdade nos olhos”. Onde estão os que têm estatura? Em vez disso, temos uma elite que acredita que “não havia risco”: Nenhum Estado, nenhuma pessoa ou instituição poderia resistir ao peso do poder financeiro ocidental combinado, armado contra eles.

No entanto, a reação já começou. A raiva cresce à medida que o discurso público debate incessantemente “o absurdo” (“O que é uma mulher?”), enquanto toda a gente desiste de resolver as questões mais profundas em jogo.

Na obra de Neil Howe e William Strauss de 1997, The Fourth Turning: An American Prophecy, os co-autores “rejeitam a premissa profunda dos historiadores ocidentais modernos de que o tempo social é linear (progresso ou declínio contínuos) ou caótico (demasiado complexo para revelar qualquer direção). Em vez disso, adoptamos a visão de quase todas as sociedades tradicionais: Que o tempo social é um ciclo recorrente“.

Em The Fourth Turning, chega a crise. Segundo os autores, é nesta altura que a vida institucional é reconstruída a partir do zero, sempre em resposta a uma ameaça sentida à própria sobrevivência da nação. “As pessoas e os grupos começam a participar numa comunidade mais vasta”.

É possível que isto represente o realinhamento político vertiginoso que está em curso – a destruição de todas as categorias tradicionais, deixando no seu rasto apenas dois lados; não a esquerda e a direita, mas o insider e o outsider.

Mas Malcom Kyeyune adverte:

“A elite dirigente está cada vez mais zangada e amarga pelo facto de os governados já não a ouvirem; os governados, por seu lado, estão amargurados pelo facto de o sistema não agir tão obviamente no seu interesse, nem sequer fingir que o faz. É possível que um dia acordemos e descubramos que nem os políticos nem os eleitores pensam que a ‘democracia’ está a fazer muito para os ajudar”.

Isto reflecte muito bem a sensação de que a sobrevivência da civilização ocidental está em jogo. O processo é suscetível de remodelar a política ocidental ao longo de uma nova linha de fratura, que encontra expressão no confronto entre os que desejam uma reviravolta “verde” da sociedade humana; um mundo “trans” para as crianças; a imigração fácil; a reordenação radical do poder entre os grupos “identitários” na sociedade; a alteração da própria natureza da cultura ocidental – e os que se opõem visceralmente a tudo isto.

 

___________

O autor: Alastair Crooke [1949-] Ex-diplomata britânico, fundador e diretor do Fórum de Conflitos, uma organização que advoga o compromisso entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, era uma figura de destaque tanto na inteligência britânica (MI6) como na diplomacia da União Europeia. Era espião do Governo britânico, mas reformou-se pouco depois de se casar. Crooke foi conselheiro para o Médio Oriente de Javier Solana, Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia (PESC) de 1997 a 2003, facilitou uma série de desescaladas da violência e de retiradas militares nos Territórios Palestinianos com movimentos islamistas de 2000 a 2003 e esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade em Belém. Foi membro do Comité Mitchell para as causas da Segunda Intifada em 2000. Realizou reuniões clandestinas com a liderança do Hamas em Junho de 2002. É um defensor activo do envolvimento com o Hamas, ao qual se referiu como “Resistentes ou Combatentes da Resistência”. É autor do livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolution. Tem um Master of Arts em Política e Economia pela Universidade de St. Andrews (Escócia).

Leave a Reply